sexta-feira, junho 17, 2005

O legado de Cunhal

Fonte: http://semiramis.weblog.com.pt/

O Traspasse de um mito

Considerar a coerência como uma virtude, independentemente do âmbito em que essa coerência se exerce, é uma perversão só justificável pela hipocrisia dos políticos. A coerência na intolerância, a coerência no totalitarismo político e ideológico, a coerência do relativismo moral, a coerência no assassinato do carácter dos opositores não podem ser virtudes, a menos que se tenha perdido o sentido dos valores morais. Elogiar Álvaro Cunhal, gabando-lhe a coerência, só por hipocrisia se pode tomar como elogio.
Tive a possibilidade de assistir à desagregação do PCP numa posição privilegiada, mantendo relações de amizade com um leque muito variado dos protagonistas desse drama. E como eram relações de amizade, despidas de qualquer adesão política, testemunhei, directa, ou indirectamente por via familiar, a forma como as relações entre esses protagonistas evoluíram durante esse período, o que foram dizendo uns dos outros à medida que as posições mútuas iam variando, os processos de intenção que foram movidos e o funcionamento da maledicência tornada em arma política.
Os ódios mais irracionais são os que se geram entre gente da mesma facção política, mas onde as vicissitudes políticas introduziram diferenças de opinião. Álvaro Cunhal criou um partido estilo pós-leninista, ou seja um partido onde o centralismo democrático conduziria fatalmente ao fim do direito de tendência, do direito à opinião diferenciada, do direito a pensar pela própria cabeça e ao dever de ser apenas um eco dos pontos políticos vindos “de cima”. Lenine não viveu tempo suficiente para assistir à perversão total a que o modelo que havia idealizado conduziu, mas tem a responsabilidade histórica de haver criado esse monstro.
Todavia quer em Lenine, quer mesmo em Marx, já havia o gérmen de tudo o que aconteceu depois. O historicismo marxista, ao ter relativizado os princípios e valores morais referindo-os a cada contexto histórico, esvaziou a moral de qualquer conteúdo autónomo, subordinando-a aos interesses da classe que tinha por missão histórica conquistar o poder. Libertado de todo o escrúpulo moral absoluto e intemporal, o marxismo de Marx e Engels deu origem ao leninismo e ao “Socialismo real” de Estaline, Mao, Pol Pot, Kim Il Sung, etc., às ditaduras sangrentas que massacraram dezenas de milhões de seres humanos, com o desiderato de construir o “homem novo”. Um humanismo perverso posto ao serviço da liquidação em massa.
Se Lenine tem a desculpa de não haver assistido ao eclodir do monstro que havia gerado, Cunhal não tem qualquer desculpa. Muitos atribuíram a disciplina espartana e o fechamento ideológico do PCP durante o Salazarismo às necessidades impostas pela clandestinidade. Foi um equívoco, pois o PCP permaneceu igual ao modelo que Álvaro Cunhal tinha instituído, apesar de se ter estabelecido entretanto um regime democrático, da progressiva decadência e posterior implosão dos regimes do Leste, e do contínuo esvaziamento político e eleitoral do PCP.
As armas para manter a ortodoxia de um partido politica e bacteriologicamente puro foram sempre as mesmas: processos de intenção e maledicência. Nada que tivesse conteúdo político ou ideológico, porque o PCP não tem qualquer suporte teórico: Marx é apenas um velhinho de barbas brancas que lhe serve de ícone, diferente do Pai Natal apenas porque não traz brinquedos e nem na quadra do Natal exerce qualquer influência. As influências de Marx são longínquas, indirectas e resultam da regurgitação soviética do marxismo.
Se a eliminação física estava fora do alcance, restava o assassinato do carácter através da maledicência: deixar cair frases sugerindo que o “camarada” X não cumpria as suas tarefas e não tinha qualquer valimento político, aliás nunca tinha tido, visto serem outros camaradas que afinal lhe tinham feito o trabalho até então; que estava a tomar atitudes anti-partido e a ligar-se com gente que pretendia o enfraquecimento e a liquidação do partido; dar a entender que haveria faltas graves no trabalho político do “camarada” X; também surtia efeito, enquanto tal ainda fez sentido, dar a entender que o “camarada” X falara na PIDE. Sempre acusações nebulosas, cheias de subentendidos, mas vazias de factos concretos. O visado só começava a sentir os efeitos quando notava que os “camaradas” se afastavam dele como da peste.
É a táctica do salame – o partido corta fatia a fatia e, em cada corte, todo o restante salame está aliado contra a fatia que sai; a fatia seguinte sofre um tratamento idêntico àquele com que tinha colaborado quando ainda fazia parte do salame, e assim sucessivamente. A mesma táctica que foi utilizada por Estaline para se ver livre de todos os que lhe faziam sombra. No fim, quase toda a velha guarda bolchevique havia sido eliminada.
O mesmo sucedeu com o PCP. Tudo o que se assemelhasse a espírito crítico, a criatividade, a capacidade de ter ideias próprias, foi eliminado num processo que vem desde a década de 40, que tinha estabilizado após Cunhal se tornar líder incontestado do PCP, mas que teve uma última fase após o advento de Gorbatchev e a convicção que internamente começou a ganhar corpo de que o partido estava num impasse político. Os que ousaram contestar a ortodoxia foram sendo eliminados: Zita, o grupo dos 6, José Magalhães e o seu grupo, etc., etc., Carlos Brito (inicialmente apenas marginalizado) e, dois ou três anos depois, João Amaral e os chamados renovadores. Com a progressiva depuração dos protagonistas principais da corrente heterodoxa, foram abandonando o PCP muitos milhares de militantes anónimos que se reconheciam cada vez menos na liderança dos incondicionais. Sobejou uma massa informe, cinzenta, que agora ficou órfã do seu guia político e espiritual.
Aquelas personalidades tiveram sorte, pois o PCP não estava no poder. Não foram exterminadas fisicamente e o assassinato de carácter apenas teve efeitos internos. E as zangas entre cada “fatia” dos depurados (afinal as “fatias” posteriores haviam antes colaborado, por acção ou omissão, na maledicência) foram sendo sucessivamente sanadas.
Ter assistido a esse processo marcou, de algum modo, a minha entrada na idade adulta e a minha mundividência social e política. Vi, embora em miniatura incruenta, a verdadeira face do “Socialismo Real”. A verdade está na realidade dos factos e não na teoria das utopias, e ter convivido com essa realidade foi um poderoso factor de orientação e uma fonte de inspiração no emaranhado das teorias políticas, sociais e económicas.
No fundo todos devemos algo a Álvaro Cunhal – eu, por ter verificado ser imprescindível cotejar e a aferir as teorias políticas e económicas pelas suas consequências práticas; Portugal, porque o centralismo cunhalista transformou um partido incipiente num grande partido de massas e vice-versa; os restantes partidos políticos, porque se deixaram de preocupar com o PCP; etc.. Em contrapartida ele ficou-nos a dever muito, pois ainda pesa sobre nós a herança política, social e económica do PREC – um capitalismo nacional fragilizado; uma Constituição blindada e castradora; o reverenciamento do papel do Estado; uma sociedade onde só reivindicamos os nos inalienáveis direitos, esquecendo que também temos deveres.
E neste balanço, o legado de Álvaro Cunhal é manifestamente negativo.