sexta-feira, junho 17, 2005

No adeus a Cunhal

Fonte: http://semiramis.weblog.com.pt/

A Perversão da Iconolatria
A classe política, a comunicação social, os meios intelectuais e mesmo a M M Guedes acotovelaram-se numa comovida homenagem pela morte do político cuja faceta de «obreiro do triunfo da liberdade sobre a ditadura», conforme sentida evocação de Sampaio, o levara a declarar, numa entrevista a uma jornalista italiana, em pleno PREC, que “jamais haveria uma democracia parlamentar em Portugal”, e cuja acutilante capacidade de previsão política ficara consubstanciada na frase: “é preciso viver muito pouco para não assistir à instauração do socialismo em Portugal”, pronunciada então durante as exéquias de um camarada de partido.

Aqui e ali, muitos adiantam alegações para encontrar explicação para a situação bizarra da democracia portuguesa decretar luto nacional por alguém que tentara, por todos os meios que teve, que ela não visse a luz do dia. É simples – os intelectuais (políticos, jornalistas e agentes culturais) sempre tiveram um fascínio intenso pelo totalitarismo ideológico, principalmente o de esquerda. Os intelectuais desconfiam da «ordem espontânea» dos regimes liberais e compreendem melhor uma ordem «construída». Uma teoria social tipo “chave na mão” fundamentada num corpo “sólido” e atractivo de doutrina sobre a necessidade e o determinismo históricos. Tudo muito bem explicado, com as peças bem encaixadas umas nas outras, e que sirva de modelo explicativo que nos tranquilize sobre o passado e nos arrebate sobre o futuro.

Os intelectuais menosprezam a «ordem espontânea» do mercado, porque esta oferece ao público o que este deseja, enquanto que eles pregam ao público o que ele deve e não deve desejar. O mercado opera dentro de um sistema de preferências e de juízos de valor desinteressante para o intelectual. Por isso, não custa muito compreender que muitos intelectuais confiem mais no Estado do que no mercado. O Estado não funciona por uma «ordem espontânea», mas primordialmente sob a influência de lobbies políticos e sociais, e aqui, os intelectuais (políticos, jornalistas e agentes culturais), e mesmo a MM Guedes, movimentam-se bem e têm uma enorme capacidade de angariar subsídios e favores.

Tudo isto concorreu para que, a partir da primeira década do século XX, os intelectuais se colocassem ao serviço do reverenciamento dos regimes estatizantes e totalitários, das paixões políticas, e se tornassem intelectuais de convicção. O século XX foi o século da organização intelectual dos ódios políticos, porque o totalitarismo ideológico subsiste pelo ódio aos que não partilham das suas convicções. Principalmente na esquerda (ler, por exemplo, as barbaridades que intelectuais com a estatura de Aragon e de Sartre escreveram, e o fascínio que o comunismo causou em gente como Martin du Gard, Gide, Malraux e outros), mas também na direita (por exemplo, Heidegger, Leni Riefenstahl e, entre nós, António Ferro).

O fascínio permaneceu e mesmo que os factos mostrassem, à evidência, os erros e os massacres cometidos por esses regimes estatizantes e totalitários e a perversão a que as respectivas doutrinas conduziram, essa estiva pútrida não foi erradicada do subconsciente colectivo e emerge, sempre que tem oportunidade, sob as mais variadas formas. E tem moldado o pensamento politicamente correcto que tem contagiado toda a nossa comunicação, social ou privada.

Foi essa subserviência perante o fascínio do totalitarismo de esquerda e o pensamento politicamente correcto que levou Sampaio a dizer barbaridades, tais como, «É um grande comandante(!!) que desaparece», «uma grande figura do século XX português», etc.

E são os mesmos que ficam preocupados quando alguns dirigentes russos elogiam Estaline ou alguns portugueses elogiam Salazar. Esquecem-se que não pode haver dois pesos e duas medidas.

Como escrevi há tempos, «a religião é o ópio do povo e a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais».
Publicado por Joana às junho 15, 2005 02:21 PM