domingo, setembro 25, 2005

A degradação da Corporação Militar

As associações de militares, depois de o Governo Civil de Lisboa recusar uma manifestação sua e de tal decisão ser confirmada por um Tribunal, por ser ilegal, arranjaram um expediente: as suas esposas convocaram a tal manifestação. Proibido de participar na manifestação convocada pelas suas esposas, lançaram mão de um novo expediente: concentrarem-se num espaço supostamente privado, o Mercado da Ribeira em Lisboa. O recurso sucessivo a estes expedientes constitui, indubitavelmente, uma grosseira fraude à lei. Daqui parece decorrer que os militares não têm qualquer respeito pela Lei e não hesitam em lançar mão dos expedientes necessários para alcançar os seus fins, mesmo que irrazoáveis, injustos, ilegítimos ou ilegais.

Mas o que está em causa? O que faz os militares serem tão virulentos no seu protesto?

Eles dizem que é a degradação da condição militar. Mas o que vem a ser isso da degradação da condição militar?

Bem, ouvindo com atenção as suas reivindicações, conclui-se que tem a ver com:
- Os níveis remuneratórios
- As idades de passagem à reserva e à reforma
- O sistema de protecção na saúde
- O estatuto social

Numa brevíssima síntese pode sumarizar-se a questão nos seguintes termos.
Níveis remuneratórios
Os militares dizem que nos últimos 20 anos perderam uma parte muito significativa do seu poder de compra e comparam-se com outros corpos especiais, designadamente com os magistrados, dizendo que comparativamente as suas remunerações são hoje comparativamente muito inferiores aos níveis equivalentes daqueles outros corpos especiais.
Não demonstram, todavia, que o seu vencimento está abaixo daquele que aufeririam se estivessem no sector privado. Aliás, é muito interessante notar que há imensos militares de patentes elevadas que acumulam o seu vencimento público com rendimentos do trabalho provenientes do sector privado em circunstâncias que levam a crer que dedicarão muito pouco tempo às incumbências públicas.
Idades de passagem à reserva e à reforma
Os militares não aceitam a alteração da actual situação, designadamente, colocar o limiar da passagem à reserva aos 55 anos e à reforma aos 60.
Actualmente, a situação não é igual para todos os militares, mas é possível, por exemplo, um paraquedista ou um piloto de caça passar à reserva aos quarenta e poucos anos. Sendo que, invariavelmente, saem do sector público para empregos no sector privado muito bem pagos, como é o caso dos pilotos.
Sistema de protecção na Saúde
Actualmente os militares têm um sistema de saúde próprio especialíssimo: nenhum outro sistema é tão generoso para os próprios e respectivas famílias. Os militares não aceitam qualquer alteração, nem sequer uma uniformização dos sistemas de saúde dos vários ramos das forças armadas.
Estatuto social
Os militares entendem que a sociedade não lhes reserva o mesmo respeito de outros tempos, nem reconhece devidamente o seu esforço. Pois, o problema está precisamente em saber qual é o esforço e o contributo que dão à sociedade… Acima de tudo os militares esquecem que o respeito não se decreta, CONQUISTA-SE! MERECE-SE!

O que dizer desta concepção da condição militar e das reivindicações?

Confesso que noção do que é a defesa da condição militar expressa pelos militares me deixou profundamente desconsolado.

Na minha concepção, a condição militar está relacionada com:
- Uma missão, a defesa do território nacional, dos cidadãos portugueses e demais residentes em Portugal, a cooperação na segurança interna (por ex. no combate à criminalidade altamente organizada e ao tráfico de droga) e na protecção civil (prevenção e o combate a catástrofes e o auxílio aquando da sua ocorrência) bem como a defesa de outros interesses nacionais e a cooperação na execução da política externa do Estado Português (designadamente na prossecução da paz mundial e do entendimento entre os povos)
- Um conjunto de valores: a identidade e independência nacionais, a abnegação e o auxílio
- Uma ética: rectidão, probidade, boa-fé, serviço
- Uma hierarquia e um escrupuloso respeito pela disciplina, pelos órgãos de soberania e pela instituição militar

Mas, como vimos, na óptica dos militares, a condição militar não passa de um estatuto a que pensam ter direito e nada tem a ver com uma herança cultural, com uma missão especial e com um conjunto de especificidades de que é necessário dotar um corpo de servidores do Estado para que possa cumprir aquela missão no respeito dos valores fundamentais da comunidade nacional e da herança cultural de nove séculos de história militar e de soberania.

O triste espectáculo com que os militares nos têm prendado nos últimos tempos deixou um profundo desapontamento, tendo abalado irreversivelmente a confiança que o país neles depositava. Não é problema menor. Sou daqueles que entendem que a segurança interna e externa é fundamental à sustentabilidade da comunidade nacional e que deve fazer parte do núcleo mais central das funções do Estado. O que os militares têm mostrado é, não que tem havido uma degradação da condição militar, mas sim que tem havido uma degradação da corporação militar, corroída pelo corporativismo e pelos interesses mesquinhos, sendo duvidoso que ainda seja possível contar com estes militares para assegurar essa missão essencial de defesa da comunidade nacional.