"Participei no mês passado a convite da Associação Forense do Oeste no Café de 5.ª Feira que aquela leva a cabo todos os meses no Velhinho Café Central das Caldas da Rainha.
Desejei falar sobre o Direito e a Justiça na Prática Judiciária.
Entenderam, porém, que teria de abordar um tema que pudesse ser melhor abarcado pelas pessoas que estariam presentes – juristas, médicos, professores, gente de todas as profissões.
E, assim, escolheram-me o tema "O amor".
Logo fica aqui a seguinte ideia:
Amor e desejo são coisas distintas. Desejar um bom café não é amá-lo.
O desejo morre logo que é satisfeito.
O amor é um eterno insatisfeito (insatisfação deve haver também na procura da verdade).
Dei nota de tudo isso na última reunião da Direcção, e logo pensaram que poderia tornar a abordar tal assunto aqui e agora.
Entendeu-se, todavia, que sem excluir de todo o âmbito do amor (mesmo o da alegria e dor, de Pedro e Inês, de Romeu e Julieta, do Tu e do Eu) se escolhesse um tema com um maior acentuado tom jurídico.
E foi, nessa conformidade, que tomei a liberdade de escolher (e a liberdade de escolha é o que melhor caracteriza o Homem – Henrique Rojas, El valor de Eligir).
Justiça da Razão. Justiça do Coração.
Antes de entrarmos no fundamental de hoje (se quiserem eu falo só de amor) permitam-me pensar que era bom que fosse frequente a realizacão do Café de 5.ª Feira, (na Brasileira) com temas variados, e com um novo estilo coloquial, em que todos intervenham activamente (neste mês em Caldas da Rainha falar-se-á sobre as Rainhas).
E lembrar também, como o faz George Steiner (A Ideia de Europa) que o café é, além do mais, local de debates intelectuais, e que a Europa é feita de "cafeterias", de que é terno exemplo em Lisboa, a Brasileira de Pessoa – enquanto estas existirem a "ideia de Europa" que nelas se formou terá conteúdo válido.
Desenvolva-se o mapa das cafeterias de Milão de Stendhal, de Veneza de Casanova, de Paris de Baudelaire, e obter-se-á um dos marcadores essenciais da "ideia de Europa" que assim se formou e se pretende culturalmente regenerada (e quem diz cultura que é o modo como cada sociedade constrói o seu próprio mundo partilhado – (Frank Smith-Pensar), diz liberdade, diferenca, condição e garantia da diversidade dessa mesma Europa (liberdade que é a categoria ética da modernidade).
Tudo isto a justificar que se escolha um "café" para uma coloquial reunião como esta, em que afadigadamente vimos buscar uma cultura que nos permita uma melhor prática judiciária do Direito e da Justiça.
Mas em tema de Amor quero relembrar Como o faz Slavoj Žižek (Benvindo ao Deserto do Real) que segundo o antigo mito grego EUROPA foi uma princesa fenícia raptada, e depois, assim violada por Zeus, que tomara a forma de um touro.
Não admira, por isso que o seu nome signifique "aquela que tem uma expressão triste".
Não e uma imagem eloquente da Europa?
A Europa (enquanto ideologia) não é o resultado de dois raptos sucessivos de uma pérola, por bárbaros?
Primeiro, o pensamento grego raptado e vulgarizado pelos Romanos.
Depois, o cristianismo raptado e vulgarizado pelos bárbaros do Ocidente no início da Idade Média.
Não estaremos agora a assistir a algo como um terceiro tempo deste processo, representando a "guerra contra o terrorismo" a conclusão aterradora do longo processo de colonizacão ideológica, política e económica da Europa pela América?
Se pudessemos julgar Zeus pela sua conduta de violenta paixão seria com a justiça da razão ou corn a justiça do coracão?
Só rapto ou também violação?
Há que pôr aqui a questão da valoracão de novas circunstâncias e contextos, e o problema da construção do tipo legal de crime, da sua interpretação e da importância do princípio da legalidade (Prof. Jose de Faria e Costa — Construcão e interpretação do tipo legal de crime a luz do princípio da legalidade: duas questões um só problema? — RLJ, Ano 134, n.º 3933).
Pertinente nesta sede o defender que a construção do tipo legal de crime se faz também por um acto de interpretação, a qual não é só a normal valoração das circunstâncias e contextos, mas, sobretudo, a projecção da interpretacão futura.
Operávamos com o velho procedimento da subsunção automática, com o formalismo abstracto da lógica jurídica, com uma pura técnica jurídica?
Ou antes com a lógica do coração?
Acabamos corn a ditadura da lei fazendo reinar a democracia dos afectos?
Na Torre de Marfim em que sempre se coloca o Direito tem que caber também o amor, numa afirmação de que naquele não está apenas o saber, mas também o sentimento do Homem, de que o seu objecto não tem a sua sede apenas na cabeça, mas também no coração do Homem.
Em sede afectiva há que ter em conta o ponto de vista do sentimento jurídico que é a arte de ter pré-compreensões correctas.
Direito:
Ciência e arte
Pensar e sentir.
Quando nos situamos de um modo particular na consideração de relações com um fundo acentuadamente sentimental o coração deve ter lugar no Direito com o mesmo título da razão.
E em sede de relações familiares mais do que falar de direitos e deveres se cura, verdadeiramente, de solucionar manifestaçõs de amor.
Porque assim se empregou a palavra amor é momento de destacar que o importante não está na palavra, mas no que esta antes dela – há que procurar a verdade no subsolo da linguagem.
Como nos diz o grande poeta Rilke:
O amor é:
Como a flecha que vencendo o arco passa a ser mais do que ela própria, pois, em nenhum lugar permanece imóvel.
Direi eu que a justica é de igual modo a flecha que vencendo o arco da lei passa a ser mais do que ela própria na sua incessante busca da verdade.
E os homens, por regra, não amam a verdade, mas, a sua verdade (Ramiro Calle – Livro do Amor).
O jurista (ser humano com limitações) não opera com inertes como o escultor, mas com matéria viva, ou seja, a paz colectiva e a justiça, que é imprecisa e está em contínuo movimento.
E o justo não é o bom e o legal mas o equitativo.
Aristóteles preocupando-se com a dificuldade da aplicação da lei abstracta aos casos concretos sugeriu como correctivo a equidade temperando-lhe o rigor com a sua adequação.
Como diz o Prof. Castanheira Neves a equidade é também uma forma de justiça.
O juiz que aplica uma lei num espírito profundamente técnico tem boas hipóteses de ser profundamente injusto, ao mesmo tempo que, se for necessário, encontra na lei um alibi para a sua irresponsabilidade ou indolência.
A medida do justo esta noutro lado: mais não é do que um julgamento equitativo de um juiz justo, o que implica que possua uma integridade pouco comum e uma recta consciência moral. (Thomas de Koninck, A Nova Ignorância e o Problema da Cultura).
Como refere Paul Ricoeur :
"a consciência é apenas a convicção que profere um julgamento em equidade. A este respeito, pode dizer-se que a equidade do julgamento é a face objectiva cuja correspondente subjectiva é constituida pela convicção intima."
E esta convicção intima é o único meio de assegurar a utilização imparcial da independência de quem julga. Anote-se que o poder judicial pela sua independência não constitui uma forma privilegiada para o diálogo de interesses, antes para o julgamento destes.
Independência no coração dos juizes, mas igualmente uma independência e objectividade do juiz perante as partes do processo. (António Pedro Barbas Homem O justo e o injusto).
Acentua José Jiménez Villarejo, Juiz do S.T.J. de Espanha que "o julgador tem que ser sabedor de que para ser independente aqui e agora unicamente lhe faz falta o querer sê-lo".
No íntimo do seu coração o juiz (e todos os juristas) tem de compreender uma vez por todas que o direito é algo diverso da lei, que uma norma que não tenha qualquer pretensão da justiça é um "não direito" (a lei deve ser um projecto de justiça).
Permitam-me que aqui refira os "não lugares", esses espaços de anonimato que acolhem cada vez mais indivíduos, e de que são paradigmáticos exemplos os centros comerciais.
Traducão literal de "non lieux", termo jurídico que designa a "não acusação", a "não pronúncia", ou seja, como sabemos a decisão pela qual se diz não haver procedimento criminal contra alguêm (Marc Augé – Não Lugares. Introducão a uma Antropologia da Modernidade).
O Direito não é algo de substancial mas de relacional (Artur Kaufmann, Filosofia do Direito).
Cada um de nós sabe que tudo o que diz respeito à justiça se relaciona com a ordem social e mesmo universal, cujo sentido aí se desfaz e, se restaura para que o convívio humano seja possível (Eduardo Lourenço "O tempo da justiça in Esplendor do Caos").
E o verdadeiro Direito, (sensível bandeira ao vento das mutações sociais, que melhor se defende e define auto-criticando-se) a real Justiça (e não há uma ideia de pura justiça) aparece apenas nas decisões concretas, em cujo decurso se vão manifestando deficiências de diplomas legais que se julgam perfeitos.
A justiça não se procura na generalidade da lei, antes se encontra na diversidade do concreto, do singular, do individual. Mais decisiva a aplicação da lei do que a própria lei.
O juízo de legalidade que o juiz profere é precedido, determinado por um juízo de justiça de natureza intuitivo-emotional, ditado pelo sentido de justiça (A. Braz Teixeira, Sentido e Valor do Direito).
Que me importa a mim o código da justiça se dentro desse código há apenas letras e não justiça (Leonardo Coimbra – Cartas referidas por Paulo Ferreira da Cunha, As Faces da Justiça).
E sabemos também que o legislador se deve resignar a ver as suas leis tratadas como "partes" do direito, e não como todo o direito (Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil – Ley, derechos e justicia).
Justiça da Razão,
Justiça do Coração,
Justiça da Emoção.
Colocamos deste modo a actualíssima questão de saber se pode o julgamento da justiça depender da opinião pública.
Sabe-se que a opinião pública não age por persuasão; ela impõe-se e penetra nas almas, por meio de uma espécie de pressão imensa que o espírito de todos exerce sobre a inteligência de cada um (Alexis Tocqueville, A Democracia na América).
Ela entra bem fundo no coração de cada um, fazendo misturar caoticamente justiça da razão, justiça do coração e justiça da emoção, como o ilustra a preconceituosa vaga de comoção do CASO ESMERALDA, (e como sucede em todos os processos que tratam de casos de natureza sentimental).
Assim dizemos, sem grande rigor, pois se sabe que os psicólogos anglo-saxónicos distinguem muito bem entre "emotion" e "feeling".
A emoção é para eles um fenómeno fisiológico que pode ou não ser consciente (se se faz consciente transforma-se em "feeling", em sentimento (José António Marina, A Selva da Linguagem).
Como diz António Damásio – O Erro de Descartes – o uso dos termos razão e racionalidade é relativamente convencional.
Uso geralmente o termo razão para denotar a capacidade de pensar e fazer inferências de um modo ordenado e lógico; e o termo racionalidade para denotar a qualidade do pensamento e do comportamento que resulta da adaptação da razão a um contexto pessoal e social.
Não uso indiferentemente raciocínio e tomada de decisão, visto nem todos os processos de raciocínio levarem a uma decisão.
Porque falamos de caos (e de coracão – de amor) lembremos, como o fez Dulce Pontes em recente entrevista, que por vezes necessitamos de entrar num certo caos para depois podermos entrar numa ordem quase absoluta.
Assim é em qualquer decisão – da justiça, do amor...
Hoje torna-se, aliás, imperioso distinguir entre opinião pública e a opinião publicada.
Como destaca Antoine Garapon (La Justice et le Mal) estamos perante uma democracia de opinião assente em três pilares:
A justiça.
Os média.
A opinião pública (esse parlamento das ficções, como diz Peter Sloterdijk – El desprecio de las Massas. Ensayo sobre las luchas culturales de la sociedade moderna).
Democracia reactiva e instintiva que fala mais do que pensa.
Há uma forte tendência para se tornar a justiça pública e publicada, sobretudo a penal – temos por isso de entender bem a fenomenalidade social que esta desencadeia e alimenta. (Prof. Faria Costa – Direito Penal da Comunicação).
Na verdade, a apreensão global e integrada do fenómeno criminal tornou-se não só em objecto privilegiado dos meios de comunicação social, mas também indesmentivelmente seu objecto de culto.
O fenómeno social crime (e não só) desencadeia pulsões e mecanismos de sublimação que se limita a aproveitar, quando não a exacerbar.
O crime porque é apelativo (e há mais matéria jurídica apelativa) suscita reacções imediatas de repulsa ou adesão, deixa espaços para processos de transferência, e, percorre um arco de tempo longo, o que permite que os "media" (cujos actos têm um tempo de vida efémero, mas não os seus efeitos) façam um tratamento retalhado durante muito tempo.
O tom dramático e cénico da justiça penal (com medos, mitos e ritos) tornou-se apetecível para os "media", criando a ideia, às vezes perversa, de que só é válido o que tem existência comunicacional.
Certas actuações judiciais recentes (é ocioso mencioná-las) têm sido recebidas com protestos públicos imediatamente denunciados como ataques a independência judicial, quiça porque se supõe que esta correria perigo se os juizes caíssem na tentação de se submeterem aos desejos dos protestatários.
Não podemos olvidar três aspectos problemáticos que se relacionam com este fenómeno:
1 – o risco da politização da justiça. (critérios de conveniência e não critérios legais)
2 – o governo dos juizes (parcial e fragmentário)
3 – a responsabilidade dos juizes (estes são independentes e inamovíveis, mas também responsáveis)
Nem esquecer a via difusa, mas constitucional, que pode ser utilizada pelos cidadãos em virtude de dois direitos fundamentais:
- o de expressar livremente os pensamentos, ideias e opiniões;
- o de manifestar-se pacificamente (direito que normalmente se exercita para publicitar de forma colectiva os pensamentos, ideias e opiniões).
Quando os cidadãos assim manifestam a sua discrepância com uma actuação judicial que juridicamente não tem fácil explicação (pelo menos a seu ver) estão a fazer valer o seu direito a um juiz imparcial – e isto para além de não lesar a independência judicial, pode ser uma saudável contribuição para o bem decidir por parte dos juizes (José Jimenez Villarejo).
Dito isto relembremos que a verdade em que tem de assentar a justiça é sempre complexa (demasiado grande para mim) e requer trabalho calmo, sereno e seguro para ser atingida, bem diferente da superficialidade e da versão imediata que os "media" trazem ao público.
Assinale-se que a crítica e o debate das soluções judiciais (não há sábios mas todos temos momentos de sabedoria – Sponville "A alma do Ateísmo") não deve ser confundida corn manipulação de sentimentos de justiça e de injustiça.
A justiça tem de ser discreta e não clamorosa.
Todos nós temos de ser discretos actores neste drama da justiça.
Não esqueçamos que afinal de contas o mundo do Direito é o mundo do quotidiano visto do outro lado do espelho, e que a justiça é conflito que não dispensa racionalidade e razoabilidade e que não pode assentar numa falsa tolerância.
Anote-se que hoje se defende já a necessidade de uma certa dose de intolerância para que se possa elaborar uma crítica da actual ordem de coisas (Slavoj Žižek, Elogio da Intolerância).
No que respeita propriamente ao amor há que pensar numa desejada passagem para o tão necessário amor colectivo, amor social (Justiça, Tolerância, Solidariedade).
No início aludimos a um eventual iulgamento de Zeus.
Não esqueçamos, porém, o julgamento de Jesus Cristo.
A Crucificacão e a Democracia (Gustavo Zagrebelsky).
Justiça restaurativa (só Estado – Arguido ou só Vítima - Agente).
Perdão da vítima como primordial finalidade do Processo Penal?
O Processo de Jesus.
No momento do apelo ao povo, para escolher entre Cristo e Barrabás sucede que aquele instigado vocifera:
Crucifica-O.
Todos os que santificam o povo fazem-no para o poder utilizar.
Quem julgou não foi o povo da democracia, mas o povo da demagogia.
E hoje acontece o mesmo, numa época de reciclagem em que nada parece morrer de todo, do mesmo modo que nem sequer a vida eterna parece destinada a durar para sempre.
HOJE PROMOVO OUTROS SINAIS
(POEMA de E. Maciel, Grupo Coral da Justiça Porto)
1 – Hoje promovo outros sinais, outros indícios.
2 – Promovo um tempo novo em nós, solestícios.
tol3 – Promovo a cidade sereníssima com jardins e portal abertas aos passos de quem passa.
4 – Promovo rouxinóis e arlequins à esquina dos medos e cansaços, segredos de mãos entrelaçando, beijos na tarde que esvoaça.
5 – Promovo pressentimentos de fontes e de ninhos.
6 – Promovo aromas de pinho e malvasia.
7 – Promovo danças e um brilho novo nos olhos das crianças.
8 – Promovo céu e luar no rosto de toda a gente esquecida da paisagem.
9 – Promovo terra e mar, e uma estrela cadente, e veleiros à abordagem de um poente.
10 – Hoje abstenho-me de acusar.
11 – Ao abrigo da lei nova promovo o verbo amar, e que o Homem aguarde melhor prova."
- Juiz Conselheiro Fernandes Magalhães -
01 de Março de 2007
Auditório da Associação Jurídica de Braga
Etiquetas: actualidade, lei, política